quarta-feira, 20 de março de 2019

O pedigree do nosso viralatismo

É muito comum ouvirmos que o brasileiro possui um “espírito de vira-lata”. Entretanto, mais do fator do que um fator cultural, o “viralatismo” é uma legitimação da rapinagem das nossas riquezas baseada na nossa inferioridade aos americanos e europeus.


O espírito vira-lata possui suas origens bem antes do surgimento do próprio Brasil. Todo ser humano possui necessidade interna de dotar um sentido para a sua vida. Porém, a concepção de vontade própria surge apenas com a religião, pois o individualismo é um dos produtos da tradição judaico-cristão.

Com o surgimento do judaísmo e do cristianismo, as pessoas começam a escolher seus próprios caminhos, é o chamado livre arbítrio. Apesar de haver um código de regras claro a ser seguido, seguir ou não as regras era uma escolha pessoal e o descumprimento ocasionava em punições para além da vida, diferentemente do que ocorria antes do judaísmo onde a quebra das regras era punida com castigos.

Tal liberdade de escolha de caminhos faz surgir a moralidade. Posteriormente, tal conceito é a aprimorado com são Paulo e o rompimento da divisão dos eleitos e não eleitos onde todos são iguais. Por fim, Santo Agostinho surge com a concepção que o espírito é a ligação direta com Deus e a recompensa do além. Portanto, o espírito seria o “bem”. Ao controlar o espírito, o indivíduo teria o controle sobre as perigosas paixões corporais onde é necessário o domínio dos impulsos naturais para a salvação.

Tal noção de Santo Agostinho passa a vigorar de modo invisível dentro do contexto moral coletivo. Se todos nós nascemos dentro de um contexto moral, tal contexto é o que vai definir os sentimentos morais do indivíduo. Portanto, no passado, havia uma concepção moral de que a salvação se encontrava no além-mundo e era necessário o controle dos impulsos corporais para atingi-la. Surge assim, uma hierarquia moral do cristianismo onde o corpo era considerado o banal e o espírito a dignidade e o caminho para Deus.

Com o advento da Reforma Protestante, ocorre um enorme impacto cultural no mundo. Inclusive nos países católicos. O protestantismo surge reforçando as características da disciplina e do autocontrole, influenciando as organizações que acabam influenciando a nossa vida consequentemente.

O grande impacto da Reforma Protestante está no trabalho. Se antes o trabalho era visto como algo desrespeitoso, agora ele é sagrado e fonte de toda a honra de Deus na terra, passando assim a ser um modo de auto-estima, respeito e reconhecimento social. Nada é mais democrático o tal mensagem porque todos trabalham e qualquer forma de trabalho é digna desde que sejam bem feito.

Um dos primeiros a compreender tal influência protestante no mundo é Max Weber que entende muito bem como o protestantismo iria “morrer” para dar lugar a uma sociedade disciplinar do capitalismo. As idéias protestantes rompem o limite religioso e viram práticas seculares sociais e institucionais.

De tal forma, está feito o cenário para a criação da hierarquia dos países onde a moralidade é somada à economia. Com a hierarquia dos países, as nações protestantes são superiores e mais honestas enquanto as católicas são inferiores e desonestas.

Paralelamente a isso, a família também passa a ser importante como elemento de êxito na vida das pessoas porque significaria um autocontrole do impulso sexual. Se o ato sexual é uma necessidade interna e corporal, ela é vista como fraqueza.

Por fim, surge o espírito de vira-lata tão conhecido no Brasil. O fato de sermos ibéricos e católicos nos torna inferiores. Somos um povo animalizado e corrupto, dominados pela emoção e tal incapacidade de controlar os nossos desejos corporais denotam fraqueza e inferioridade perante nossos irmãos do norte.

Na nossa visão, o americano é mais disciplinado e mais trabalhador. Mesmo não havendo comprovações científicas, adotamos tal mito. Se os americanos e europeus conseguem ser mais disciplinados é porque conseguem controlar os banais desejos corporais. Se o controle do desejo é a glória, portanto, nada mais justo do que nossas riquezas estarem com os mais dignos que nós.

Estamos inseridos em um contexto cultural que nos oprime e legitima a nossa dominação. Se você se perguntar por que nos sentimos mais inferiores, espero que agora você possa saber e posso combater tal cultura.


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